26 de março de 2014

A barata e a mulher

Espetáculo G.H | Reprodução/Teatro Candeia

Acordei às 5h30 da manhã para enfrentar o trânsito e conseguir chegar à faculdade às 7h. Realidade de muita gente. Aulas de 7h às 13h. Realidade de quase todo estudante universitário. Processo seletivo para a empresa júnior de comunicação às 14h. Realidade dos que querem aprender na prática. Início do processo às 14h30. Realidade impontual das coisas no Brasil. Término do processo às 17h. Caminho até a orla para chegar ao ponto de ônibus, horário de pico, tudo lotado, tudo congestionado. Realidade diária. Espero o Vilas do Atlântico passar. Chegam dois ao mesmo tempo. Entro no segundo busu, pago mais uma tarifa amarga de R$2,80. Penso: "São R$5 e..." faço uns cálculos estranhos e "São R$5,60 por dia". Como uma luz no fim do túnel: uma poltrona vazia. Meus olhos se iluminam, eu sento. O relógio marca 17h15, calculo o tempo também e concluo que devo chegar em casa por volta das 19h. Para não desperdiçar esse tempo, pego para ler uma apostila que a professora solicitou para o dia seguinte. Tipos e gêneros do discurso.

Entre exemplos e diferenciações, a leitura vai fluindo como dá entre o barulho e o balanço. "Tais categorias correspondem às necessidades da vida cotidiana..." Alguém se aproxima e se apoia do lado da minha poltrona, observo a mão sem olhar para o rosto: é uma mulher. Continuo. "e o analista do discurso não pode ignorá-las". Não posso ignorar a mulher. Mas observo direito e a mão nem é enrugada, meu cansaço fala alto. Leio a frase completa: "Tais categorias correspondem às necessidades da vida cotidiana e o analista do discurso não pode ignorá-las". Meu Deus, "necessidades da vida cotidiana", "não posso ignorá-la". Ela resmunga algo, mas minha audição é péssima e não consegui ouvir. Deve ter sido algo sobre o caos do horário ou sobre o próprio cansaço. Tento me fazer de distraída, também estou cansada, mas "não posso ignorá-la". Começo a criar um labirinto existencial tal qual G.H. ao ver a barata em "A paixão segundo G.H" de Clarice Lispector. A mulher sou eu num futuro próximo. Não quero ter varizes. Permaneço sentada. Ela tem uma tatuagem, eu não. Acabo ignorando-a: necessidades da vida cotidiana.

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